quarta-feira, outubro 28, 2015

Sapato, ao pó retornarás!

Da variedade de “aperreios” que já vivi, o de hoje certamente encabeçará o rol dos mais hilários (e constrangedores). Empolgado para uma entrevista pro doutorado na cidade de Quebec, a pouco mais de três horas aqui de Montreal, acordei cedo e me prepararei para a pequena maratona de ir e voltar no mesmo dia, de ônibus. Como se tratava de um compromisso formal, ainda mais num prédio de um ministério canadense, optei por dar uma certa formalidade ao figurino. Assim, decidi usar um (o único) sapato menos informal que trouxe do Brasil. Seria a primeira vez em que o dito-cujo pisaria literalmente em solo canadense, pois desde que cheguei aqui, no comecinho do ano, ele jamais saiu da gaveta.
Munido de casaco, luva, cachecol e pasta de trabalho, saí de casa às 8h, debaixo de uma deliciosa temperatura de -1 grau (nada de surpreendente para os padrões canadenses e bem condizente com o meu gosto). E lá fui. Ao deixar o metrô e caminhar pelos túneis do sobsolo até a Gare d’Autocar (a rodoviária daqui), ainda perguntei pro meu eu: “por que diabos eu nunca usei esse sapato aqui? O bicho é confortável que só!”, festejei. E segui pisando bem.
Como a entrevista estava marcada para as 14h30, fui despreocupado, pois o ônibus das 9h me desovaria na Gare du Palais (a rodoviária de lá) às 12h15, ou seja, com tempo suficiente para comer por lá mesmo e pegar um taxi até o endereço acertado. Bem, aí começou o drama.
Na fila para o embarque no ônibus, senti uma estranha sensação debaixo dos meus pés. Ao olhar pra baixo, vi uns fragmentos pretos. Discretamente, afastei-os do meu pé, pensando ter pisado neles sem querer. Mas a sensação se manteve e, ao olhar mais atentamente, vi que os diabos dos fragmentos desprendiam-se se mim, ou melhor, do meu sapato. Ou melhor: DOS meus sapatos. Sim, no plural.
“Tabarnaaaaakkkkk! (um dos palavrões-sacro utilizados por aqui)!”, vociferei interiormente ao verificar que os solados dos dois sapatos estavam se desfazendo – esfarelando-se, para ser mais preciso.  E agora???
Absolutamente vermelho de vergonha, comecei a rastejar os pés enquanto a fila se movia, para ver se os desgraçados não destruíam por completo minha dignidade até a minha entrada no ônibus. “Preciso entrar e me sentar logo”, arquitetei (sem saber ao certo que grandes vantagens isso me traria. Mas só queria era me livrar daquele constrangimento).
Embarcado,  sentei-me no assento que julguei ser o mais apropriado a me esconder, uma vez que não havia nenhum passageiro ao lado. Acomodado na janela, discretamente avaliei o estado da coisa. Meu povo, um desespero. Parece que eu tinha dançado catira na lava do Vesúvio.
Inacreditável! Os solados estavam inteiramente destruídos. Nas bordas que os ligavam às laterais do sapato, as borrachas soltavam-se do nada. Mas o pior era embaixo, mais exatamente nos calcanhares. Os bichos desprenderam-se para sempre do malvado calçado. Rombos e mais rombos marcavam a medonha superfície, soltando cada vez mais lascas de borracha.
Explicação científica: guardados desde sempre no armário, os infelizes tiveram a borracha do solado ressecada. Ao se defrontarem com a caminhada em chão gelado e depois em chão aquecido, não lhes restaram muita coisa a não ser desfazerem-se, ininterruptamente. Impiedosamente.
Como ainda não estava de todo ruim, chega uma passageira do meu lado! Uma adolescente!!! Pronto, categoria mais crítica de ser humano não existe em toda a espécie humana. O jeito foi jogar o casaco por cima das pernas, mas, na verdade, lançando-os mais para baixo, para esconder os pés e a sujeira que eles, ou melhor, os solados dissidentes produziam.
Mas o desespero estava tamanho que comecei a rir. E não parei mais. Compartilhei o drama com os amigos via Whatsapp, o que gerou comentários de toda sorte. E, para o meu azar, eu não conseguia para de rir. A teenager, sem nada entender (claro), me olhava como quem diz: “ou é doido ou tá bêbado!”. Nada eu disse. O pior é que o pior ainda estaria por vir, ou seja, descer na estação de uma outra cidade e procurar uma salvação. Resistiriam os pisantes às 3 horas de viagem? Morreria eu de vergonha antes de chegar ao meu destino? Como (e o que) eu faria até achar uma loja para comprar um novo par de sapatos? Inquietações filosóficas como essa martelavam a minha cabeça.
Bem, durante o trajeto (e confirmando a teoria darwinista da evolução das espécies), desenvolvi uma estratégia de sobrevivência: mantive minhas patas enfiadas o mais fundo possível debaixo do banco do passageiro à minha frente. Enquanto isso, esfregava um pé no outro para que, de alguma forma, os solados se soltassem logo e eu pudesse, pelo menos, caminhar sem que as pessoas percebessem os rastros da minha passagem. Mas não adiantou. A desgraça soltava alguns pedaços grandes, outros pequenos, o que só aumentava o estágio deplorável desta peça da minha indumentária.
Chegamos ao nosso destino. Disfarçando alguma consulta ao celular, deixei todos os passageiros saírem. Ao descer, perguntei à motorista se ali na rodoviária teria alguma loja de sapatos. Claro que ela, imediatamente, endereçou os olhos cretinos ao meus pés, e respondeu com um irônico “désolé” (que encaixou-se como um “fudeu-se!”), dizendo apenas que seria melhor eu pegar um taxi. Sem olhar pra trás, e na esperança de não ouvir as gargalhadas que ela provavelmente produziu, corri, ops, arrastei-me até o ponto de taxi, onde logo fui atendido pelo monsieur Choukri, um coroa marroquino, já avô, radicado há 40 anos no Canadá, e que (vocês entenderão por quê) tornou-se meu amigo/anjo-da-guarda.
Sensibilizado com o meu sofrer, o cara (sem esconder o riso aberto, claro), disse que me levaria a um shopping, onde eu poderia comprar os sapatos, almoçar e, de lá, seguir para o local da entrevista. Beleza. Acordamos o preço da viagem e fomos embora.
Primeira demonstração da santidade do cara: “vamos fazer o seguinte. Eu não vou te largar lá. Vou te acompanhar até a loja que você quiser”, disse ele, estacionando o carro e apontando a entrada principal do shopping. “Lasquei-me”, pensei. Entrar em um shopping assim, arrastando os pés e deixando farelos e pedaços de sapato pelo caminho não eram exatamente os meus planos. Mas, lá fomos: eu, monsieur Choukri e os sapatos de (M)Orfeu.
Percebendo meu constrangimento (e sem parar de rir) ele sugeriu: “tire os sapatos e vá só de meias. Aqui no Canadá ninguém se importa”. Pausa para refletir... acatei a ideia. Mas só temporariamente. Assim que tirei o que ainda restava dos sapatos, vi o olhar curioso de três mulheres que entravam no shopping naquele mesmo instante. Recoloquei os desgraçados. Vi a placa da Atmosphère, uma famosa loja de artigos esportivos daqui, e decidi entrar lá (até porque estava bem próxima de mim). Pensei que estivesse salvo.
O vendedor, também sensível à minha causa, falou que não teria nada que servisse ao meu pé e que se adequasse à indumentária que eu portava. Não ligo a mínima para essas coisas de moda, mas convenhamos que chegar de bota de neve e calça mais ou menos social não seria algo a me deixar completamente à vontade para a entrevista. Sem falar que os preços eram assombrosos!
Choukri, então, lembrou-se de uma outra loja, ali mesmo naquele shopping, que, segundo ele, além de ter os sapatos de que eu precisava, ainda tinha bons preços. Corremos para lá. Bem, ele correu. Eu me arrastei.
E finalmente deu certo. Achei um sapato bacana, com preço razoável e que não agrediria nem os bons costumes nem a formalidade que a ocasião exigia. Meu amigo Choukri ainda me esperou comprar um sanduíche para almoçar, me levou ao destino do meu trabalho e ainda me convidou a passar férias com a família dele em alguma provável passagem minha pelas terras de Casablanca, para onde ele sempre retorna quando o inverno aqui chega ao ápice.
Moral da história... sapato féla da puta!!!

Ah, a entrevista foi ótima!

Nenhum comentário: