domingo, junho 02, 2013

Meia idade. Meia vida.

A ansiedade o fez quebrar a promessa feita a si mesmo de demorar-se ao máximo na cama em dias de domingo. Levantou-se cedo e imediatamente dirigiu-se à porta da sala para apanhar o jornal, deixado lá há pelo menos uma hora. Não se importou em abrir a porta de acesso à rua trajando apenas a calça velha e quadriculada de seu pijama. O peito nu desafiava o remanescente frio de um inverno recém ultrapassado e despertava o olhar curioso de uma vizinha idosa, que na calçada oposta à sua, regava as plantas da jardineira.
Agachou-se rapidamente e agarrou o exemplar espesso, cujos inúmeros cadernos eram impiedosamente descartados ao chão para que ele encontrasse logo aquele que lhe interessava: o caderno de cultura.
Uma mistura de sensações o atingiu quando viu, estampada na capa da editoria, sua foto em meia página. Tanto o título quanto a apresentação da entrevista, concedida após a premiação como escritor revelação do ano, lhe eram elogiosos.
Saíra bonito na foto. Pelo menos foi o que achou. Parcialmente sentado à ponta da mesa, foi fotografado de corpo inteiro, segurando o livro que o consagrara. Calça jeans e camisa xadrez aberta, por baixo da qual deixara aparecer a camiseta branca de que tanto gostava. O rosto estava expresso sem disfarces, captado sob um ângulo que favorecia aqueles que considerava seus traços mais marcantes: cabelos fartos, com têmporas levemente grisalhas; olhar sério, e misterioso, por trás dos óculos de armação de cor clara; queixo quadrado, cuja barba por fazer conferia-lhe um ar de desleixo programado, e um sorriso que, embora não estivesse manifesto na foto, aparecia lá, de alguma maneira – desafiando a interpretação do leitor.
Mas, sem entender exatamente por quê, deteve-se numa frase em particular do texto que o descrevia. O autor da entrevista escrevera que o escritor “desponta no universo literário com o impacto que as gerações contemporâneas de leitores acostumaram-se a ver apenas na ficção. Afinal, saltou do anonimato para a consagração com apenas uma obra publicada e em um período da vida em que diversos escritores já colecionam alguns títulos: a meia idade (...)”.
Meia idade. Meia idade... Meia idade? Repetiu e deu tom de indagação várias vezes à expressão, como se não a compreendesse ou não a aceitasse. Era, afinal, um termo que se acostumara a ouvir ao longo da vida, mas com o qual jamais pensou em efetivamente conviver. Meia idade, ele? Não poderia ser. Para ele, o termo só fazia sentido quando aplicado àqueles resignados com o passar do tempo ou cuja vitalidade inquestionavelmente os abandonara.
Mas não a ele, que não desagarrara-se da sensação da juventude. Os 43 anos de vida que agora ostentava eram, para ele, tão naturais (e vigorosos) quanto quaisquer 20 anos exibidos por universitários recém-chegados à fase adulta da vida.
Negara para si mesmo que o tempo também passara para ele, ou simplesmente não se deu conta da velocidade com que os anos se vão? Esta dúvida o atordoou por infinitos minutos. Lembrou das diferentes percepções de tempo que o avançar da idade produz. Não há criança, ou mesmo adolescente, que não considere uma pessoa de 30 anos praticamente um velho. E não há pessoa de 30 anos que não se sinta ao mesmo tempo desesperada por ter abandonado a efervescente faixa dos 20, e aliviada por ainda não ter atingido a dos 40.
Mas, para ele, o avançar da idade dava elasticidade a sua concepção de velhice. Já não considerava mais ancião aquele cidadão de 60 anos, idade da qual apenas 17 anos agora o separavam. Por isso, a expressão meia idade o incomodou menos do que o surpreendeu.
O que significaria, afinal, a meia idade? Uma meia vida? É isso? Teria já chegado (ou ultrapassado) a metade de sua existência? Esta ideia sim, o perturbou, tendo em vista que a infância e a juventude são vividas em estado de transe, de não-consciência, e, por isso, não permitem seu pleno aproveitamento, ou o seu aproveitamento consciente. Quando se é jovem, apenas vive-se como se o acúmulo dos anos só se expressasse e pesasse para os outros, não para si próprio. A ideia de avanço da idade, quando se é jovem, é tão distante quanto a longevidade que se espera atingir. O jovem acredita que o velho já nasceu assim e não consegue assimilar a informação de que o tempo passa numa velocidade acima da capacidade humana de acompanha-lo.
Sentiu-se ofendido pelo uso da expressão meia idade. Não pelo jornalista que a utilizou, mas por ele mesmo. Como pôde não ter percebido que, sim, aquela expressão aplicava-se a ele inclusive em aspectos demográficos, uma vez que a expectativa de vida está lá, friamente estabelecida?
Desestimulou-se, temporariamente, em ler a matéria sobre seus méritos literários. Precisava, agora, planejar alguma forma de viver a outra metade restante de sua vida.


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