quinta-feira, março 16, 2006

Cinema mudo

Os anos não foram capazes de apagar da memória dele a exata expressão do rosto dela.
Por isso, naquele fim de tarde chuvoso, na cidade antiga, não teve dúvidas: era ela quem caminhava, apressada, do outro lado da rua. Quase não acreditou. Duvidou por um certo tempo de suas faculdades mentais. Pensou estar delirando. Mas convenceu-se de que era ela, sim — ainda que pouco lhe restassem esperanças em reencontrá-la.
Não a chamou. Não saberia o que dizer. Apenas apressou o passo e a seguiu, olhando-a fixamente. De tão penetrante, o olhar dele parece ter berrado. Ela parou. Inspirou com força o ar, como se essa tarefa tão trivial e espontânea de seu organismo houvesse falhado. Levou ao peito a mão direita, na qual carregava a pequena bolsa. O gesto parecia dar-lhe a coragem que não acreditava possuir.
Hesitou. Não sabia se deveria permanecer parada, virar-se ou seguir caminhando —ainda mais apressada. E essa dúvida durou intermináveis segundos. Também para ele, à espera, ansioso, da decisão dela.
E mais uma vez ele duvidou de sua razão. Pensou ter tido a impressão de que ela começara a virar-se. Surpreendeu-se quando constatou que era realidade.
Ela virou apenas o suficiente para fitá-lo.
Nada seria capaz de interromper aquela troca de olhares — profundos, surpresos e indiscutivelmente amargurados. Mesmo diante da reação de espanto dele, os lábios dela, inacreditavelmente rubros, dilataram-se sutilmente em direção às laterais do rosto, esboçando, juntamente à suave elevação de suas sobrancelhas, o sorriso por ele tão aguardado.
Mas ele foi novamente surpreendido. Antes que consolidasse o sorriso iniciado, a expressão dela reverteu-se de forma assustadora. Os lábios retrocederam, encolhendo-se ao ponto de, com as sobrancelhas agora franzidas, desenhar um semblante marcado pelo ódio — cujas razões eram para ele desconhecidas e para ela um artifício de defesa e proteção a ambos. Um suspiro impaciente, mas melancólico, finalizou aquele reencontro inesperado, tão subitamente interrompido como o fora inciado. E os dois nunca mais se viram. E nunca mais se esqueceram.

2 comentários:

Anônimo disse...

Que triste.
Por quê?
Lalá

Wagner Vasconcelos disse...

Sei lá. Coisas da vida, Lalá.
Beijos